Para que conste, retirei tudo de: http://aspirinab.com/valupi/abrir-o-livro/
abrir o livro
Published by Valupi Agosto 23rd, 2007 in Valupi.O hóquei em patins português morreu no início década de 90, mas do seu funeral só nos chegou notícia em Junho último. Foi enterrado na Suíça, por suíços e franceses. O 6º lugar, a pior classificação de sempre em 70 anos de campeonatos do Mundo, passou por entre as notícias. O povo adepto que se poderia alvoraçar com a desdita também já passou, jazendo na amnésia. Quem tem menos de 40 anos não pode saber o que foi o hóquei em patins português em Portugal. Porque não pode saber o que era viver nos anos 70 e 60 e 50 neste país rural, analfabruto, cobarde e infantil. Um país literalmente desesperado, sem orgulho, que tinha no hóquei a possibilidade de viver a fantasia de se imaginar cosmopolita. Puro delírio. Nem nos Jogos Olímpicos o hóquei em patins podia entrar, quanto mais na atenção do Mundo. A nós se juntavam outros nostálgicos de tordesilhas, impérios e rios de prata, espanhóis, italianos e argentinos. Opulentos miseráveis. O hóquei, desporto para aristocratas, joga-se de bengala. Garbosos, elegantes, altivos, os jogadores sabem-se alados. Em cima dos patins o céu está mais perto, a terra é lisa e desliza.
Por leonina sorte, apanhei a última geração de amor popular, a equipa dos 5 magníficos: Ramalhete, Rendeiro, Sobrinho, Xana e Livramento. Como a televisão da época ainda não era omnívora e insaciável, brilhavam as vozes dos locutores da rádio. Desses relatos ficou-me uma lição atinente ao poder das metáforas. Em 1977, o Sporting foi campeão europeu. Alguém, cujo nome não fixei, relatava os jogos tendo no seu reportório a expressão: abrir o livro. Dizer-nos que o Sporting estava a abrir o livro correspondia a celebrar os momentos em que a equipa alcançava um nível exibicional que o encantava, o equivalente à entrada da música para premiar o espectáculo do toureiro. Embora a sua voz fosse moldada pela grave solenidade de quem comunica com a audiência, o timbre era de bem contido encómio, de festa sentada.
Os movimentos sincronizados dos atletas, o juízo e gosto linguístico do comentarista, a imaginação púbere do ouvinte, uniam-se estes diferentes planos da realidade para transformar a expressão abrir o livro na minha iniciação ao poder divino das metáforas. Eu tomava conhecimento da existência de um livro onde estavam as jogadas perfeitas, aquelas que não tinham oposição possível nem possível melhoria. Eram absolutas, por isso estavam gravadas num livro. A equipa, por eleição misteriosa, conseguia abrir esse livro de vez em quando. E, enquanto o livro estava aberto, era até bom que a leitura não fosse perturbada pela marcação de um golo. Isso poderia levar à alteração súbita da coreografia mágica em acção, embora fosse esse evento a promessa de redenção, apocalipse e transcendência inclusa no livro agora aberto. O sublime estava no que antecedia a glória, o gozo de uma jogada eterna era preferível ao êxtase de um golo efémero. Mais valia não chegar ao fim, continuar a passar a bola, a fintar os adversários.
Era uma lição relativa à condição paradoxal do humano, o único animal que lê. O único animal que vai de patins.
Valupi,
Texto espectacular. A lembrar que um dia, não distante, uma recolha de bons aspirínicos momentos poderia, sem desfeita, engalanar um recanto de montra.
Memórias auditivas sobre patins, só me resta a do Livramento. Era o herói, um Joaquim Agostinho, um Alves Barbosa (se não sou anacrónico) deslizante, um Baptista Pereira rodopiando. Não sei se isso me faz velho, ou me faz novo. Sei que não me fazia cosmopolita, e que aquilo era uma forma - a que se arranjava - de ser docemente português.
Texto belíssimo. A merecer moldura. Sem metáfora.
Meu Pai era um homem duro. Não tínhamos rádio, porque nem electricidade havia. E, se a tivéssemos, não teríamos dinheiro para esse luxo. Um dia, ou seja, uma noite, chegou a casa e contou. Contou que Portugal ganhara à Espanha. Por um a zero. Salvo no último minuto. Como os heróis ou as heroínas das histórias dos filmes do Atlântida Cine. O verdadeiro Atlântida Cine, do Aeroporto de Santa Maria, não o de Carcavelos. Golo de penalty. Para doer mais a espera, para que a expectativa massacrasse mais a alma.
Meu Pai tinha lágrimas nos olhos. Então compreendi que o hóquei merecia ser amado. E a Pátria.
Papá morreu há muito tempo. O hóquei foi-se finando. Salvar-se-á a Pátria?
que saudades que este texto me provocou. tambem eu apanhei esta equipa no seu auge, grandes jogos.
não sabia. fiquei em estado de choque.
Jesus Correia, campeão do Mundo de hóquei e nacional de futebol ao mesmo tempo contava esta história passada em Roma. Foi a comitiva portuguesa visitar o Papa em fins do anos 40. No convívio o Papa terá achado graça ao nome do Necas (Jesus) e pediu-lhe para partir um bolo. O Necas respondeu «O Raio que o parta!». Pôs toda a gente a rir porque o Raio era de facto o capitão…
Em Pac,o de Arcos ha uma estatua de Jesus Correia no jardim e, no CDPA, continua a tradic,ao do hoquei em patins. Antigos jogadores com os filhos pequenos nos treinos de sabados e domingos de manha e nos jogos do campeonato distrital: esses garotos tem o melhor treinador do mundo, bestial para os miudos, que tenta fazer deles os melhores, quer como jogadores quer como pessoas.
Ha uns dias joguei ludo com o meu filho. No fim do jogo, agarrou nos bonecos e fe-los cumprimentarem-se uns aos outros, dizendo “bom jogo, bom jogo”. Chama-se desportivismo e todos os fins de semana o vejo, em miudos de 6 anos.
(assinado: mae de um jogador no seu segundo ano de hoquei em patins)
Belíssima prosa. Intocável. Parabéns.
Quer dizer que calçaram os patins ao hóquei em patins português?
Fernando, muito me contas. E o advérbio até peca por escasso. Confesso que nunca penso nisso. Esta escrita sai-me tão descuidada, súbita, rápida, que a volatilidade do meio me parece o único ecossistema onde pode sobreviver.
Enfim, mas não seríamos os primeiros.
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Daniel, gostei muito de conhecer o Senhor teu pai. Um vero patriota, como todos os açorianos.
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francis, grandes jogos, grandes alegrias. Pavilhões cheios de uma gente que nunca se calava.
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sem-se-ver, e com toda a razão.
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jcfrancisco, saborosa anedota. Muito obrigado. Por acaso, um genro do Jesus Correia foi meu patrão. Falava dele com reverência.
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Catarina, Paço de Arcos tem esse encanto acrescido, a tradição do hóquei. Invejo o teu filho.
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Mao, aceito como um pedinte o teu exagero exagerado.
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claudia, acertaste em cheio com o aléu.
Devemos ser mais ou menos da mesma idade, pois sinto o hóquei como o descreves e lembro-me bem desses cinco violinos em patins.
Sobretudo, claro, o Livramento que passou uns anos no meu fófó, o clube da minha terra (Benfica) onde o hóquei sempre foi rei e a sua magia arrastava multidões e paixões.
Soube-me bem, pá, ler esta tua prosa.
Gosto de me sentir um puto mas não desdenho a componente jurássica…
Que texto belíssimo , obrigado pelas palavras o Hóquei em Patins agradece.
Todavia deixe-me discudar um pouco, o Hóquei em Patins não morreu tem mais equipas , mais jogadores ,apesar de não se apostar nos clubes nem haver insentivos à prática deste desporto . Temos uma classe de dirigentes que não sabem vender este desporto , contudo as pessoas aderem , Temos um desporto como se fosse um diamante em bruto do qual os dirigentes não sabem o que fazer .
Sou do Hóquei e da CUF , não posso deixar de relembrar também o Leonel Fernandes , o Vitor Domingos , o José António , entre outros , que esgotavam sempre o Pavilhão , muitas das vezes até pedíam às pessoas para se porem de pé , para caberem mais e ainda ficavam muitas de fora . Temo-nos de lembrar da fabulosa equipa de Moçambicanos ( Moreira , Fernando Adrião , Amadeu Bouços , Souto e talvez o maior de sempre , Velasco ) . Por isso o Hóquei não morreu , nem vai morrer , porque enquanto houver alguém que ame este desporto isso não vai acontecer .
Por fim devo dizer que os políticos Portugueses , estão com dúvidas em incluir o Hóquei em Patins nos Jogos da Lusofonia 2009 em Portugal . Se à desporto lusófono, ele é o Hóquei e será uma tremenda injustíça não ser incluído. O País deve muito a este desporto , que povoa o imaginário de milhões de Portugueses por isso os nossos Governantes não podem ser ingratos.
Cumprimentos
Rinito
5 estrelas. Texto fantástico. Obrigado.
Texto de um poeta… Uma delícia… Obrigado
Sem PALAVRAS.
Até um analfabeto consegue ler este maravilhoso texto.